Sem ruídos

sexta-feira, maio 27, 2005

finalmente... alguém que entra neste antro de silêncio

Quando era pequeno... ainda me lembro como se fosse hoje...
Não tenham medo, já passou... apesar de ser uma história triste, já passou...
Estava frio, não sei se seria Inverno, mas estava frio. Estava em casa com o meu irmão. Ainda pequenino, e na altura era mesmo pequenino, franzino, magricelas, baixinho, com o meu cabelo encacolado, triste, sozinho. Como me lembro de chegar a casa da minha avó, e ela gritar com a minha mãe "O rapaz vai morrer... tens de lhe dar comida", então o meu pai comprava vitaminas, obrigavam-me a comer a sopa, eu não conseguia, eu não gostava, eu vomitava, eu ficava sem comer, eu levava porrada, mas a sopa ficava por comer, assim como eu ficava o dia inteiro à frente do prato, mas era mais forte. Passados uns anos, o meu pai chegava a casa ao fim do dia e perguntava "Comeste alguma coisa?" Era nessa altura que eu me lembrava que era suposto eu comer, até então nunca me havia lembrado e perguntava "Mas porque precisamos nós de estar sempre a comer?" Não era disto que queria falar, voltemos atrás. Estava sozinho em casa com o meu irmão. Como começa, não me lembro. Do que não me esqueço é como terminava. De um momento para o outro, eu berrava com o meu irmão, um corria atrás do outro, ele berrava comigo. Apanhava-me, batia, eu corria atrás dele, chorava. Ele voltava, batia-me eu caia no chão, voltava-me a levantar, era pequeno, ele apesar de mais novo era maior, era mais forte... devia comer mais talvez... ele batia-me mas eu voltava-me a levantar, às vezes eu apanhava o que me vinha à frente, uma vez foi uma cadeira, outra um jornaleiro, outra foi uma faca. Quem sofreu foi a porta do quarto dele que teve de ser substituída. Mas de um momento para o outro, não era dor, da dor não me lembro. Não me lembro de doer, não sei se chegou a doer, não sei se foi nos braços ou nas pernas. Lembro-me de cair no chão, ficar sem ar. Lembro-me de ficar sem forças e chorar. Sufocava, soluçava. Era pequeno, não percebia o que se passava. Sentia o frio do chão. Estava frio. Mas não era Inverno. Ficava sem forças voltava a cair, ficava sem ar. Precisava de ajuda. Como chorava. Já não era criança. Não sei que estação do ano era. Podia ser Outono ou Verão. Mas não tinha ar...
Sentia o meu ouvido encostado ao chão. Tudo em volta era silêncio, dentro do meu coração tudo era silêncio. Estava frio, mas não era Inverno. Finalmente... deixo entrar alguém neste silêncio... levanto a cabeça do chão, continuo a chorar, já não sou pequeno. Não sei quanto tempo passou, às vezes ainda fico com falta de ar. Sobrevivi... o meu pai continua a perguntar se comi alguma coisa quando chega a casa. Às vezes tenho de mentir...

2 Comentários:

  • Olá Ricardo.
    Já não "cuscava" o teu "sem ruídos" hà uns tempitos... Obrigado pela tua visita e pelo teu "comment" no nosso bailogue! Não percas o filme, a sério que vale a pena.
    Grande abraço e um bom fim de semana
    P.

    By Anonymous Anónimo, at 11:37 da manhã  

  • Eich! Eu sei que há coisas que não nos esquecemos facilmente, principalmente situações como esta que contaste. Mas, temos é que ir "sem ruídos" apagando a pouco e pouco fases menos boas do nosso passado. Ajuda-nos a crescer.
    Hugzzz

    By Blogger Unknown, at 9:24 da tarde  

Enviar um comentário

<< Home